Arte Africana para um Brasil da democracia

Após o centenário do desafio modernista, as artes ditas não europeias têm conquistado mundialmente a atenção das instituições museológicas, que por sua vez vêm passando por grandes transformações. Essas modificações não são propriamente de âmbito técnico-estilístico, nem dizem respeito a suas manifestações artísticas intrínsecas, mas refletem mudanças político-culturais das sociedades contemporâneas. Às vésperas também do centenário da ascensão e derrota do nazifascismo, um dos mais terríveis dramas europeus e do mundo no século XX, a nova luta no campo democrático aparece agora, mais do que nunca, também no campo da busca e defesa das equivalências nas formas artísticas mundiais.

A principal onda de valorização das artes mundiais tem aparecido nas transformações e reformas estruturais que vêm ocorrendo nos museus da Europa desde o final do século XX e início do século XXI. Antigos museus de etnologia ou aqueles calcados ainda em uma administração eurocêntrica das manifestações artísticas começaram a reconhecer que, na história da criação dos museus, a partir dos gabinetes de curiosidades e das classificações pseudocientíficas do projeto colonial, ocorreu uma insuficiência de método e, sobretudo, uma necessidade de autocrítica sobre as forças impositivas exercidas pelo passado colonial na interpretação das manifestações artísticas produzidas pelos diferentes povos mundo afora.

A coleção africana do Museu Oscar Niemeyer foi estabelecida em 2018 a partir da doação da Coleção Ivani e Jorge Yunes de São Paulo, uma das mais importantes do país. Foram doadas quase 2 mil obras de arte africana de todo o continente, mas também foi dada atenção especial àqueles povos cujas ligações históricas, culturais e genéticas com o povo brasileiro permitem maior aproximação e melhor entendimento de nossas raízes. São obras, por exemplo, de povos do complexo linguístico bantu do centro e do centro-sul da África, que nos trouxeram conhecimentos em áreas tão diversas como construção e metalurgia, contos populares, alimentação e religiosidade, e que nos influenciaram em muitos outros aspectos culturais e de ecologia dos saberes, como no trabalho artístico e funcional na madeira e no uso de pilão e da enxada, entre outros implementos de agricultura extensiva. Há também obras de povos sudaneses, como os iorubá, os ashanti e outros, que nos brindaram com a tecnologia da identificação de regiões auríferas, tratamento e transformação da matéria bruta do ouro, aumentando o valor agregado ao elaborar joias e outros objetos que seriam retirados do país e vendidos na Europa. É deles ainda a tecnologia da bateia de madeira e o conhecimento da medicina tropical, dividido com outros povos africanos e indígenas, e que era transmitido aos europeus durante o período colonial, quando aqueles ainda eram escravizados e tratados como seres inferiores. A exposição de arte que explicita a riqueza artística desses povos formadores da cultura brasileira estimula a sensação de pertencimento e promove o sentido de igualdade e de outros ideais democráticos.

Historicamente, a análise e a interpretação das manifestações artísticas e das culturas mundiais, tomando como ponto de partida unicamente a experiência europeia, deixaram esse pensamento hegemônico engessado e infrutífero, tornando-o isolado e obsoleto após a ascensão do multiculturalismo, do crescimento da geopolítica multipolarizada e dos processos migratórios da contemporaneidade. Desde pelo menos a criação, na França, do Musée Du Quai Branly, em 1995 – cujo lema, em vez de se referir à manutenção do monopólio da interpretação do “outro”, buscou promover o que ficou conhecido como o “diálogo entre as culturas” –, essa história passou a se modificar também dentro dos museus mais tradicionais.

Apenas para dar alguns exemplos, outros museus da Europa seguiram esse caminho e, inicialmente, têm buscado fazer isso com reformas e mudanças internas, de pensamento e de denominação. Em Gotemburgo, na Suécia, foi criado em 1999 o Museu Nacional da Cultura Mundial. Em 2014, com a combinação de coleções do Museu de Etnologia de Leiden e do Tropenmuseum de Amsterdam, o Museu Real da África Central (Africa Museum, em Berg en Dal, na Holanda), passou a ser simplesmente Museu Nacional das Culturas Mundiais. Já na Alemanha, os antigos Museus de Etnologias de Frankfurt e Munique tornaram-se Museum der Weltkulturen (Museu das Culturas do Mundo) e Museum Fünf Kontinente (Museu dos Cinco Continentes), em 2001 e 2014, respectivamente; e o Ethnologisches Museum (Museu Etnológico de Berlim) é parte agora do Fórum Humboldt, que homenageia o naturalista alemão Alexander von Humboldt (1769-1859), defensor da democracia e da independência da América do Sul. Sendo assim, reconhecendo que na trajetória dos países colonizados se manteve a tradição de copiar, muitas vezes irrefletidamente, as ações praticadas nas metrópoles, fica a pergunta: quantas instituições etnográficas das Américas seguirão o exemplo europeu e passarão em breve a abraçar o modelo democrático das artes ao se tornarem Museus da Cultura Mundial?

Por outro lado, o que é chamado hoje de “democracia das formas artísticas” tem um histórico antigo. Isso já havia sido testado antes pelos modernistas europeus, por exemplo. Mas, para além das exposições lúdicas em que estes conectavam mundos completamente distintos posicionando esculturas de arte acadêmica e as suas próprias lado a lado com esculturas africanas e de outros povos, para além da experiência de uma espécie de “apropriação cultural”, igualmente lúdica, encontrada em fotografias de Man Ray, Alfred Stieglitz e outros – nas quais são fotografadas em preto e branco beldades pálidas, às vezes nuas ou seminuas portando máscaras, esculturas e outros objetos africanos – e para além das exposições contíguas de arte europeia e africana nos estúdios dos artistas ou nos interiores dos apartamentos de colecionadores abastados amantes da arte primitiva – tais como Louise e Walter Arensberg, Klaus Gunther Perls, Helena Rubinstein, Monique e Jean-Paul Barbier-Mueller, entre outros –, a democracia das formas prosperou, na verdade, a partir da autoconsciência de intelectuais pan-africanistas e por causa da inclusão nas artes do conceito de equipolência.

O esteta alemão August Schmarsow (1853-1936) foi um dos pioneiros entre os teóricos da indiferenciação e inclusão artística dos objetos etnográficos que chamamos hoje de equipolência, mas esse termo, que foi abstraído exatamente desse histórico das artes modernistas, foi utilizado nos anos 1980 como uma definição do paralelismo curatorial e museográfico de “formas de objetos” tomados democraticamente, independentemente de suas origens, intenções e culturas. A observação das formas artísticas mundiais a partir de novas perspectivas sobre o valor representacional dos objetos tornou a “democracia das formas” possível. Esse processo ainda em curso hoje evoca de modo plural a diversidade formal de objetos que se elevariam ao patamar de quaisquer obras museológicas em novos contextos curatoriais. Mais do que um processo de unificação das culturas mundiais dentro dos sistemas dos museus, a “democracia das formas” seria, talvez, um dos únicos instantes fugidios em que o projeto modernista teria sido incorporado de fato nas instituições; a ideia de que o universo das formas é muito mais rico e muito mais complexo do que o eurocentrismo foi capaz de lidar ou dar a conhecer. Ainda que o modelo acadêmico, instituído durante o Renascimento, e que atingiu a sua curva máxima no final do século XIX, tivesse, durante o modernismo, valor e sentido – e ainda tenha, em nosso tempo, seu fundamento –, ele foi incapaz de oferecer respostas a todas as “perguntas” da vida em sua explosão formal e dar conta da gama de possibilidades de elaborações visuais que as culturas diversas podem trazer, na própria história, em sua relação com os outros, elevando a experiência humana multipolarmente e em nível global.

A presença da coleção africana do Museu Oscar Niemeyer, em conjunto com outras expressões artísticas mundiais europeias e não europeias, é prova de que esse processo de “democracia das formas” já se iniciou, e de forma original, no nosso país. A nosso ver, a importância dessa coleção, portanto, se concretiza em três aspectos: o técnico-pedagógico, o histórico e o social. Do ponto de vista técnico-pedagógico o Museu Oscar Niemeyer, por meio do seu núcleo educativo, faz mediações com públicos de todas as idades sobre as relações existentes entre artes e culturas africanas e as artes e culturas do Brasil e do mundo; do ponto de vista histórico, essas obras refletem o processo e o embate entre a memória das formas ditas tradicionais e a percepção de uma cultura popular viva, que apresenta novas criações e inovações plásticas em um mundo contemporâneo cada vez mais conectado; e, por fim, do ponto de vista social, a formação desse conjunto artístico, fruto da doação da Coleção Ivani e Jorge Yunes (CIJY), mostrou-se uma parceria público-privada de arrojada ousadia, que servirá de exemplo para que outros museus brasileiros abracem relações dessa natureza. Uma instituição privada de caráter público, na concepção expressa nos dizeres “Ter, Manter e Partilhar”, defendido pela diretora-presidente da CIJY, Beatriz Yunes Guarita, interfere positivamente na dinâmica cultural e ajuda a promover e ampliar as artes, a cultura e a democracia de um país.

Renato Araújo da Silva, curador e especialista em Arte Africana

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As obras da Coleção de Arte Africana foram doadas ao MON pela Coleção Ivani e Jorge Yunes, no ano de 2021

Máscara Tchiwara

bamana | Mali Madeira, metal e contas 287 x 78 x 15 cm

Pote Cerimonial

bini (Reino do Benin) | Nigéria Liga metálica 41 x 35 x 33 cm

Figuras de Pássaro Calao

senufo | Costa do Marfim Madeira e metal 235 x 74 x 54 cm

Figuras de Pássaro Calao

senufo | Costa do Marfim Madeira e metal 235 x 75 x 62 cm

Mulher com Criança

lobi | Burkina Faso Liga metálica 36.5 x 10.9 x 13 cm

Máscara Kore

bamana | Mali Madeira pintada, búzios, miçangas e metal 46 x 26 x 18 cm

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